Havia decidido mudar, mas dessa vez com tanta força que acreditava finalmente ter conseguido, como acreditava pelas teorias sobre psicodelia, que quem muda, muda também o setting, terminou na rodoviária com a passagem para São Paulo em mãos, era uma manhã fria na capital catarinense e ele estava cansado após a noite mal dormida, ou melhor, não dormida, logo que chegou, sentiu um pequeno ar de sucesso, que fazia tempo que não sentia.
Resolveu então fumar um cigarro, e como pela primeira vez na sua vida parecia se importar com o demais, saiu do recinto de cheiro acre e de chão imundo que era a rodoviária daquele lugar para fazê-lo, olhou para os lados até ter certeza de estar sozinho, como se pela primeira vez a auto-agressão fosse um crime, tateou os bolsos para achar o maço novo, recém aberto, e trouxe o cigarro a boca, demorou para encontrar o isqueiro, o que parecer ser uma eternidade, sempre tenso como um animal ameaçado pelo que vinha dos outros, achou finalmente. Sentiu o ar quente solto pelo isqueiro acerta-lhe o rosto, logo em seguida a fumaça azulada da ponta subia ao ar e a fumaça quente descia-lhe pela garganta para preencher os pulmões. Sentiu prazer.
Fumou por algum tempo, trocando rapidamente o foco, para não pensar, não podia pensar, sabia que não conseguiria conclusões então resolveu matar todo o processo, viu um casal feliz que parecia se encontrar depois de longa data e percebeu que falhou, mesmo forçando a visão para outras linhas, foi inundado por visões de si mesmo em épocas mais felizes. Durante um segundo ou talvez toda uma era, relembrou os amores platônicos, os beijos apaixonados e as juras de amor insensatas.
Tomou uma decisão, sabia o que queria e aquilo era o que queria, ficou feliz de ter falhado em chacinar seus pensamentos, havia ainda coisas boas a se pensar, a se lembrar e assim, muitos sentimentos a se repetir, não era tão vazio quanto imaginava, ou melhor, como um tempo atrás com todas as suas forças desejou.
Percebeu um homem de tez negra aproximar-se ressabiado, como um outro animal assustado, tinha a tez de um negro completo, sem brilho, mas as mãos e pés estavam sujas de um cinza, a mistura de cores e o cheiro do homem revirou o estomago, lembrou que não comia a muitas horas, sentiu-se enjoado e já tateou o bolso em busca do maço novo de cigarros, sabia que era isso e somente isso que aquele homem desejava, sabia que não se misturavam, por maldade dos fatos, ou apenas por certezas sem verdades que os dois carregavam.
Torceu para que a abordagem não demorasse, torceu e torceu por todo um longo tempo, uma grande barreira separava os dois, e ele sabia disso, ambos eram homens invisíveis para o outro.
Mas a barreira se quebrou, eliminando a tensão:
-O senhor pode me arrumar um cigarro? – Achou graça de ser chamado de senhor, não acreditava nos títulos, mas não riu, apenas retirou a mão preparada do bolso, já com o maço bem preso e com prática, como se tudo que fizesse na vida fosse dar cigarros, abriu o maço com um dedo e o estendeu aberto ao homem. Ele vacilou, mas pegou, talvez pela barreira, que por nenhuma culpa dos dois, mas por extrema culpa de todos havia se criado.
-Tem fogo? – Ofereceu da forma mais educada possível o que cedia, como se para concertar alguma injustiça.
-Te...te...tenho sim- vacilou gaguejando o outro, e após alguns agradecimentos ininteligíveis, virou de costas e saiu andando.
Só agora um outro indivíduo entrava em cena, postura homossexual, também desconfiado, outro animal enjaulado, abordou o homem, o do cigarro. Enquanto esse se afastava, mas sempre olhando para os lados.
Ou é droga, ou pederastia. Pensou, na verdade soube, aproximou-se do lixo e apagou o cigarro em sua tampa, despejou a bituca dentro, não para não jogá-la no chão, apenas para observar mais um pouco os dois. Adentrou a estação arrastando a mala de carrinho, fazendo um barulho, que soava como a música da liberdade. Agradeceu ter novamente seus preconceitos, suas metas e suas certezas, sentou separado de todos, de frente para o vidro que o separava do terminal de embarque, abriu o pequeno caderno e começou a escrever, não conseguia mais entender sua própria letra, riu da ironia de um auto entitulado escritor não conseguir ler o que escreve. E pensou ser essa a paródia de toda a sua vida, era alguém que tinha as palavras, todas. Mas nunca aprendeu a ouvi-las, apressou-se a abrir a mala onde carregava sua vodka, suas roupas sujas e seu laptop.
Definiu o seu contraste com a sua volta, não importava, queria o contraste, não queria mais regras morais de não ostentação, pois era e sabia que era. Então escrevi isso que vocês estão lendo, só fui interrompido para embarcar após o chamado de, São Paulo, Jundiaí e Campinas, embarque das 6:45, plataforma 34 e agora, depois de passar a ponte e escutando dessa vez um chamado do vamos tentar ser felizes, não importa como. Vendo um lindo nascer do sol, dou o ponto final a esse texto e abro minha vodka, dessa vez e pela primeira vez em muito tempo para comemorar, talvez a última, talvez não, quem viver verá e eu no que depender de mim, o farei.
segunda-feira, 19 de maio de 2008
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Um comentário:
"quem viver verá e eu no que depender de mim, o farei."
Acho bom, aquelas tendencias suicidas não tavam rolando hahahahaha....
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