segunda-feira, 19 de maio de 2008

60 minutos do primeiro tempo

Havia decidido mudar, mas dessa vez com tanta força que acreditava finalmente ter conseguido, como acreditava pelas teorias sobre psicodelia, que quem muda, muda também o setting, terminou na rodoviária com a passagem para São Paulo em mãos, era uma manhã fria na capital catarinense e ele estava cansado após a noite mal dormida, ou melhor, não dormida, logo que chegou, sentiu um pequeno ar de sucesso, que fazia tempo que não sentia.
Resolveu então fumar um cigarro, e como pela primeira vez na sua vida parecia se importar com o demais, saiu do recinto de cheiro acre e de chão imundo que era a rodoviária daquele lugar para fazê-lo, olhou para os lados até ter certeza de estar sozinho, como se pela primeira vez a auto-agressão fosse um crime, tateou os bolsos para achar o maço novo, recém aberto, e trouxe o cigarro a boca, demorou para encontrar o isqueiro, o que parecer ser uma eternidade, sempre tenso como um animal ameaçado pelo que vinha dos outros, achou finalmente. Sentiu o ar quente solto pelo isqueiro acerta-lhe o rosto, logo em seguida a fumaça azulada da ponta subia ao ar e a fumaça quente descia-lhe pela garganta para preencher os pulmões. Sentiu prazer.
Fumou por algum tempo, trocando rapidamente o foco, para não pensar, não podia pensar, sabia que não conseguiria conclusões então resolveu matar todo o processo, viu um casal feliz que parecia se encontrar depois de longa data e percebeu que falhou, mesmo forçando a visão para outras linhas, foi inundado por visões de si mesmo em épocas mais felizes. Durante um segundo ou talvez toda uma era, relembrou os amores platônicos, os beijos apaixonados e as juras de amor insensatas.
Tomou uma decisão, sabia o que queria e aquilo era o que queria, ficou feliz de ter falhado em chacinar seus pensamentos, havia ainda coisas boas a se pensar, a se lembrar e assim, muitos sentimentos a se repetir, não era tão vazio quanto imaginava, ou melhor, como um tempo atrás com todas as suas forças desejou.
Percebeu um homem de tez negra aproximar-se ressabiado, como um outro animal assustado, tinha a tez de um negro completo, sem brilho, mas as mãos e pés estavam sujas de um cinza, a mistura de cores e o cheiro do homem revirou o estomago, lembrou que não comia a muitas horas, sentiu-se enjoado e já tateou o bolso em busca do maço novo de cigarros, sabia que era isso e somente isso que aquele homem desejava, sabia que não se misturavam, por maldade dos fatos, ou apenas por certezas sem verdades que os dois carregavam.
Torceu para que a abordagem não demorasse, torceu e torceu por todo um longo tempo, uma grande barreira separava os dois, e ele sabia disso, ambos eram homens invisíveis para o outro.
Mas a barreira se quebrou, eliminando a tensão:
-O senhor pode me arrumar um cigarro? – Achou graça de ser chamado de senhor, não acreditava nos títulos, mas não riu, apenas retirou a mão preparada do bolso, já com o maço bem preso e com prática, como se tudo que fizesse na vida fosse dar cigarros, abriu o maço com um dedo e o estendeu aberto ao homem. Ele vacilou, mas pegou, talvez pela barreira, que por nenhuma culpa dos dois, mas por extrema culpa de todos havia se criado.
-Tem fogo? – Ofereceu da forma mais educada possível o que cedia, como se para concertar alguma injustiça.
-Te...te...tenho sim- vacilou gaguejando o outro, e após alguns agradecimentos ininteligíveis, virou de costas e saiu andando.
Só agora um outro indivíduo entrava em cena, postura homossexual, também desconfiado, outro animal enjaulado, abordou o homem, o do cigarro. Enquanto esse se afastava, mas sempre olhando para os lados.
Ou é droga, ou pederastia. Pensou, na verdade soube, aproximou-se do lixo e apagou o cigarro em sua tampa, despejou a bituca dentro, não para não jogá-la no chão, apenas para observar mais um pouco os dois. Adentrou a estação arrastando a mala de carrinho, fazendo um barulho, que soava como a música da liberdade. Agradeceu ter novamente seus preconceitos, suas metas e suas certezas, sentou separado de todos, de frente para o vidro que o separava do terminal de embarque, abriu o pequeno caderno e começou a escrever, não conseguia mais entender sua própria letra, riu da ironia de um auto entitulado escritor não conseguir ler o que escreve. E pensou ser essa a paródia de toda a sua vida, era alguém que tinha as palavras, todas. Mas nunca aprendeu a ouvi-las, apressou-se a abrir a mala onde carregava sua vodka, suas roupas sujas e seu laptop.
Definiu o seu contraste com a sua volta, não importava, queria o contraste, não queria mais regras morais de não ostentação, pois era e sabia que era. Então escrevi isso que vocês estão lendo, só fui interrompido para embarcar após o chamado de, São Paulo, Jundiaí e Campinas, embarque das 6:45, plataforma 34 e agora, depois de passar a ponte e escutando dessa vez um chamado do vamos tentar ser felizes, não importa como. Vendo um lindo nascer do sol, dou o ponto final a esse texto e abro minha vodka, dessa vez e pela primeira vez em muito tempo para comemorar, talvez a última, talvez não, quem viver verá e eu no que depender de mim, o farei.

Um comentário:

Felipe Castilho disse...

"quem viver verá e eu no que depender de mim, o farei."

Acho bom, aquelas tendencias suicidas não tavam rolando hahahahaha....